Ele não gostava de futebol. Ele não gostava de arte. Tinha um time pelo qual simpatizava, mas a existência de tal esporte nunca foi uma prioridade. Não mesmo.
Então, um dia, ele foi assistir um jogo. No estádio. Um dia, um livro chamou sua atenção. Uma coletânea de poemas. Uma pintura prendeu sua atenção por vários minutos. Um Bosch. Ele não queria ir, mas seu tio não pode e ele foi fazer companhia para sua prima. Ele não queria ler aquele livro, mas algo nas páginas amareladas pelo tempo chamou sua atenção. Ele achava a pintura, de certa forma, nojenta, mas até se inclinou mais para perceber os detalhes.
Então ele começou a gostar de futebol. E de arte. Bilac foi apenas o ponto de partida. Depois veio Cecília Meireles, Castro Alves, Drummond. Depois de Bosch veio Picasso, Monet, Dali, Matisse. Depois do estádio veio a torcida, a camisa, a bandeira, a Copa do Mundo.
Mas ele nunca entendeu quando alguém lhe falava de futebol arte. E nunca soube explicar o que era, quando era perguntado. E quando ele lia sobre os jogos, encontrava montes de números, frios, que lhe contavam a partida como algo corriqueiro. E isso tirava a possível arte do futebol. E os comentaristas interesseiros também. Ele procurava e não encontrava.
Um dia ele viajou para a Argentina. Como bom brasileiro, ele não gostava da Argentina. Como bom amante do futebol, ele adorava a Argentina. E ele viu uma propaganda. Mesmo com seu péssimo espanhol, entendeu uma parte que falava algo como "malditos os que jogam sem poesia".
Então ele voltou ao estádio. E ele percebeu.
Percebeu como tudo era harmonioso. Percebeu a sinfonia dos milhares de pés andando na mesma direção em um domingo qualquer. Percebeu como aquilo era a válvula de escape de milhares de pessoas que enfrentava, todos os dias, os problemas comuns a todos nós.
Percebeu a ópera formada por mais de 15 mil vozes diferentes e iguais, o pensamento direcionado ao mesmo ponto, às vezes próximo, às vezes impossível de ser alcançado.
Percebeu os movimentos perfeitos, ensaiados por uma coreografia de torcida, espontâneos na comemoração de gol ou tão espontâneos que chegam a parecer ensaiados, as mãos na cabeça quando a bola não entra, a expressão de incredulidade marcada em todos os rostos. Como aqueles traços marcantes fariam inveja a Michelangelo, fazendo seu David parecer brincadeira.
Mas também percebeu a alegria. Alegria no rosto de jovens e velhos, de homens e mulheres, de irmãos e estranhos. Percebeu a alegria do jogador, a alegria do torcedor. Percebeu cada sorriso sincero e cada abraço apertado. Percebeu o gesto discreto pedindo o passe, a expressão de dor da lesão que se mostra presente no momento da arrancada. E a tristeza das cores adversárias no momento do jogo perdido. Luz e sombra. Alegria e tristeza. Céu e inferno separados por um milésimo de segundo, de um monte que os mestres barrocos não conseguiram separar. Ou unir.
Percebeu que somos iguais.
Percebeu o olhar do artilheiro. Percebeu o silêncio que precede o grito. A bola dominada no peito e chutada com força, que caprichosamente não entra. O repórter que busca a fotografia. O momento do gol. Tão perfeito quanto o sorriso da Monalisa. O goleiro que se estica como um dançarino, mesmo sabendo que nunca chegará a tempo. Ou chegará? A mulhara intransponível que Gengis Khan não seria capaz de vencer.
Mas um drible plasticamente perfeito seria. Aquela harmonia que Bilac buscava. Só que sem as palavras. E quem precisa delas? Existem poetas e existem poetas. Poetas que alcançam as estrelas e poetas que nos fazem parar no tempo apenas para admirar toda a sua classe no tapete verde. Poetas que colocam riso em nossas faces. E outros que nos fazem sofrer a perda de seus amores.
Não só percebeu, mas lembrou como a arte é revolucionária. Como ela é capaz de trazer o orgulho de uma nação esquecida. Ou mesmo de criar esse orgulho. Percebeu como ela é inconstante e nem sempre justa. Como o trabalho mais bem feito pode nem sempre alcançar aquilo que é seu de direito. E também como o futebol tem muito disso. Ah, como tem. E nos faz esperar, ano após ano, para que nossos anseios se tornem reais. Pode ser que eles nunca sejam. Mais romântico impossível.
E eles se tornam reais. E reis. Finalmente temos nossa amada em nossos braços. Toda uma história contada por uma imagem, por uma lembrança. É surreal, é real, é romântico. Ao mesmo tempo. Está na história e está fora da história. Seus netos conheceriam aqueles gênios, muitos anos depois. Separados por séculos, talvez. Mas juntos. Atemporal. O futebol e a arte. Futebol e arte. Futebol é arte.