sexta-feira, 25 de junho de 2010

Futebol (&) Arte?

Ele não gostava de futebol. Ele não gostava de arte. Tinha um time pelo qual simpatizava, mas a existência de tal esporte nunca foi uma prioridade. Não mesmo.

Então, um dia, ele foi assistir um jogo. No estádio. Um dia, um livro chamou sua atenção. Uma coletânea de poemas. Uma pintura prendeu sua atenção por vários minutos. Um Bosch. Ele não queria ir, mas seu tio não pode e ele foi fazer companhia para sua prima. Ele não queria ler aquele livro, mas algo nas páginas amareladas pelo tempo chamou sua atenção. Ele achava a pintura, de certa forma, nojenta, mas até se inclinou mais para perceber os detalhes.

Então ele começou a gostar de futebol. E de arte. Bilac foi apenas o ponto de partida. Depois veio Cecília Meireles, Castro Alves, Drummond. Depois de Bosch veio Picasso, Monet, Dali, Matisse. Depois do estádio veio a torcida, a camisa, a bandeira, a Copa do Mundo.

Mas ele nunca entendeu quando alguém lhe falava de futebol arte. E nunca soube explicar o que era, quando era perguntado. E quando ele lia sobre os jogos, encontrava montes de números, frios, que lhe contavam a partida como algo corriqueiro. E isso tirava a possível arte do futebol. E os comentaristas interesseiros também. Ele procurava e não encontrava.



Um dia ele viajou para a Argentina. Como bom brasileiro, ele não gostava da Argentina. Como bom amante do futebol, ele adorava a Argentina. E ele viu uma propaganda. Mesmo com seu péssimo espanhol, entendeu uma parte que falava algo como "malditos os que jogam sem poesia".

Então ele voltou ao estádio. E ele percebeu.




Percebeu como tudo era harmonioso. Percebeu a sinfonia dos milhares de pés andando na mesma direção em um domingo qualquer. Percebeu como aquilo era a válvula de escape de milhares de pessoas que enfrentava, todos os dias, os problemas comuns a todos nós.

Percebeu a ópera formada por mais de 15 mil vozes diferentes e iguais, o pensamento direcionado ao mesmo ponto, às vezes próximo, às vezes impossível de ser alcançado.

Percebeu os movimentos perfeitos, ensaiados por uma coreografia de torcida, espontâneos na comemoração de gol ou tão espontâneos que chegam a parecer ensaiados, as mãos na cabeça quando a bola não entra, a expressão de incredulidade marcada em todos os rostos. Como aqueles traços marcantes fariam inveja a Michelangelo, fazendo seu David parecer brincadeira.


Mas também percebeu a alegria. Alegria no rosto de jovens e velhos, de homens e mulheres, de irmãos e estranhos. Percebeu a alegria do jogador, a alegria do torcedor. Percebeu cada sorriso sincero e cada abraço apertado. Percebeu o gesto discreto pedindo o passe, a expressão de dor da lesão que se mostra presente no momento da arrancada. E a tristeza das cores adversárias no momento do jogo perdido. Luz e sombra. Alegria e tristeza. Céu e inferno separados por um milésimo de segundo, de um monte que os mestres barrocos não conseguiram separar. Ou unir.

Percebeu que somos iguais.


Percebeu o olhar do artilheiro. Percebeu o silêncio que precede o grito. A bola dominada no peito e chutada com força, que caprichosamente não entra. O repórter que busca a fotografia. O momento do gol. Tão perfeito quanto o sorriso da Monalisa. O goleiro que se estica como um dançarino, mesmo sabendo que nunca chegará a tempo. Ou chegará? A mulhara intransponível que Gengis Khan não seria capaz de vencer.



Mas um drible plasticamente perfeito seria. Aquela harmonia que Bilac buscava. Só que sem as palavras. E quem precisa delas? Existem poetas e existem poetas. Poetas que alcançam as estrelas e poetas que nos fazem parar no tempo apenas para admirar toda a sua classe no tapete verde. Poetas que colocam riso em nossas faces. E outros que nos fazem sofrer a perda de seus amores.



Não só percebeu, mas lembrou como a arte é revolucionária. Como ela é capaz de trazer o orgulho de uma nação esquecida. Ou mesmo de criar esse orgulho. Percebeu como ela é inconstante e nem sempre justa. Como o trabalho mais bem feito pode nem sempre alcançar aquilo que é seu de direito. E também como o futebol tem muito disso. Ah, como tem. E nos faz esperar, ano após ano, para que nossos anseios se tornem reais. Pode ser que eles nunca sejam. Mais romântico impossível.


E eles se tornam reais. E reis. Finalmente temos nossa amada em nossos braços. Toda uma história contada por uma imagem, por uma lembrança. É surreal, é real, é romântico. Ao mesmo tempo. Está na história e está fora da história. Seus netos conheceriam aqueles gênios, muitos anos depois. Separados por séculos, talvez. Mas juntos. Atemporal. O futebol e a arte. Futebol e arte. Futebol é arte.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Hoje eu falei com Deus

Sabe quando você está atrasado e o ônibus quebra? Foi o que aconteceu comigo naquele dia. Nunca estive em um ônibus que quebrou no meio do caminho, mas aquele dia foi diferente.

Todas as pessoas saíram e fizeram fila, esperando para embarcar no próximo ônibus, que viria nos recolher. Eu não. Olhei em volta e só então percebi onde eu estava.

Dei as costas ao ônibus e comecei a voltar. Subi aquele final (ou seria o começo?) da Rua XV sem pressa. Fiz a volta, subi no viaduto e parei na Praça das Nações.

Aquele é um dos meus lugares preferidos na cidade. Arrumei o cachecol e as incontáveis blusas que eu vestia para me prometeger daquele costumeiro frio que passa por Curitiba em um dia qualquer de Julho.

Não deveria ser mais que 7 horas da manhã. Respirei fundo. A caixa de água ao meu lado parecia também olhar a cidade. Vi a Rua XV indo embora, até ficar difícil enxergá-la no meio daqueles muitos prédios. Vi o Couto Pereira, outro lugar preferido da cidade, longe, um gigante verde no meio daquele mar cinzento de prédios que se confundia com o céu sem sol que nos acompanha na maior parte do ano.

Sentei. Respirei fundo. Senti o ar frio no meu rosto. Arrumei o cachecol de volta. Soprava um vento tranquilo, embora gelado.

- É uma bela vista, não é?

Olhei para o lado, assustado. Ali estava um rapaz muito magro, um pouco mais alto do que eu. Ele também estava cheio de casacos. Me olhava sorrindo. Olhos muito escuros, qualquer um poderia confundi-los com cavernas. Mas não eram assustadores, eram alegres. O cabelo comprido, todo despenteado, levantava com o vento. Tinha as mãos nos bolsos e esperava uma resposta minha.

- Sim, é. Até me faz esquecer dos meus problemas.

- Ah, humanos, sempre reclamando dos problemas!

Ele sorriu e sentou ao meu lado.

- Não vejo você muito por aqui.

- Adoro esse lugar - respondi - mas realmente, faz tempo que não paro aqui para apreciar essa bela cidade.

- Deveria fazer isso mais vezes. Particularmente, adoro essa coisa de cidades e tal. É incrível ver como homem pode construir, destruir, mudar... embora nem sempre para melhor, mas enfim. É lindo, mesmo. Não entra na minha cabeça que olhar para essa mesma direção, desse mesmo ponto, já nos mostrou paisagens diferentes, um dia...

Olhei para ele, intrigado. "Que cara esquisito!". Ele olhava para longe. Parecia estar muito longe dali.

- ...mesmo que eu tenha criado tudo isso.

Agora sim eu achava ele realmente esquisito.

- Desculpe, acho que não ouvi direito.

- Ouviu sim, guri. Mesmo que você escute Metallica no último volume, isso não vai afetar sua audição. Quando eu tava desenhando você, fiz com ouvidos resistentes.

Epa, como esse cara sabia que eu gostava de Metallica? Esse era o mistério, afinal, Metallica É para se ouvir no último volume. E que história é essa de me desenhar?

- Calma aí, cê tá falando que é Deus ou algo assim?

- Mais ou menos por aí.

- Tomou seu remédio hoje?

Isso saiu da minha boca sem pensar. Normalmente falo isso para meus amigos, quando eles começam a pirar muito em certo assunto, mas não pra um estranho, que poderia muito bem estar armado e com péssimo humor. Mas ele riu.

- Ah, bem que eu queria que essas coisas aí fizessem efeito em mim. Sabe como é, esse lance de estar em todo lugar meio que me livra de dores corporais, a princípio, mas eu tô aqui, sabe, acabo tendo uma coisinha ou outra no sentido psicológico. Só que como não tenho um corpo... ah, você não tá acreditando. Olha só. Quando você tinha 12 anos e brigou com sua catequista, porque ela disse que você não deveria fazer um monte de coisas porque iria irritar Deus, e você respondeu que Deus deveria ser um cara legal, e que por isso ele deveria estar bem de boa com o que você fizesse, eu digo que você tinha razão. Se eu dei uma coisa chamada livre arbítrio pra vocês, é porque eu quero que vocês façam o que quiserem, e isso é problema de vocês. Aliás, isso de "Deus ser um cara legal" me agradou muito. Melhor do que aquela imagem de vingativo que passam de mim por aí, ou aqueles trouxas que ficam dizendo que eu sou Eric Clapton. Ah, que que é isso, se eu fosse aparecer aqui como guitarrista, eu seria o Tom Morello.

Ok, ele saber o que eu tinha respondido para a catequista era explicável mas, ainda assim, assustador. Não mais do que o que ele falou bater exatamente com a idéia que eu tenho de Deus. E pior: ele preferia Tom Morello a Eric Clapton. Aí eu tive que concordar com ele.

- Sabe que você me convenceu? Ou não, às vezes é só meu cérebro que tá funcionando devagar pelo horário, ou eu tô tendo alucinações e tal...

- Alucinações você não vai ter até os 70, isso eu garanto. E nem vem que o cérebro funciona melhor de manhã, só que ninguém descobriu isso ainda.

- Ok, você me convenceu.

Ele sorriu.

- Mas esse lugar é realmente bonito.

- Posso perguntar uma coisa?

- Claro.

- Por que eu?

- Você é um cara legal. Eu gosto de caras legais. Você é curitibano, eu gosto de curitibanos. Exagerei um pouco quando fui dosar o orgulho de vocês, é verdade, mas fazer o que. Acabei de distraindo um pouco. Mas acho que é por isso que ainda temos umas vistas legais daqui. Aliás, achei muito legal essa coisa dos pinhões nas calçadas que vocês fizeram.

Eu ri, nervoso. Ficamos em silêncio. Ele respirou fundo e levantou.

- Bem, preciso ir. Até qualquer hora, guri.

Ele começou a se afastar. Já estava meio longe quando eu tomei coragem.

- Ei, posso perguntar uma coisa?

Ele parou, olhou de volta e sorriu. Voltou para o meu lado, esperando a pergunta.

- É verdade que o diabo é o pai do rock?

Ele gargalhou.

- Você tem a chance falar com Deus, de perguntar o que você quiser, qualquer coisa nesse mundo e é isso que você quer saber? Falei que você é um cara legal! Enfim, vamos colocar as coisas desse modo. Quando eu criei o Pink Floyd, ele criou o Yes. Quando eu criei o Black Sabbath, ele criou o Twisted Sister. Quando criei o Joy Division, ele criou Legião Urbana. Quando criei Neil Young, ele criou Bob Dylan, sacou?

- Então ele só avacalha? E sério que o Dylan é a parte avacalhada?

Ele sorriu.

- Sério que você que fez o Sabbath?

- Ah cara, eu adoro o Sabbath. Adoro Zeppelin, adoro Who. Adoro Creedence. Taí outra coisa que me deixa triste. Minhas melhores criações não são creditadas a mim.

Ele fez cara de chateado mas riu em seguida.

- Não quer saber mais nada? De onde viemos, pra onde vamos, se existe vida após a morte, qual religião é a certa, o segredo da vida, do universo e tudo o mais nem nada disso?

- Ah, isso aí eu acho que vou acabar descobrindo uma hora ou outra.

Ele sorriu novamente.

- Bem, agora eu preciso ir mesmo. Até qualquer dia desses.

Ele se afastou. Eu não fiquei olhando ele ir, voltei a olhar a cidade.

- Ah, mais uma coisa - gritou ele lá de longe. Eu virei a cabeça para olhá-lo. - She loves you, yeah, yeah.

Ele sorriu, fez a curva e foi embora. Eu olhei pra cidade novamente. Sorrindo.